A estética da mentira
Por Miguel do Rosário
O que me deixa triste é a falta de escrúpulos com que a imprensa brasileira estupra a verdade, em prol de suas campanhas golpistas. Veja o caso do Cesare Battisti, o escritor italiano beneficiado pelo governo com um asilo político. As opiniões se dividem neste caso, e creio que não há nada de mais em criticar a decisão do ministro da Justiça. O que vem acontecendo, todavia, é a criação de um front de embate político, partidário e ideológico. A mídia corporativa talvez não quisesse esse embate. Talvez quisesse apenas usar o fato para constranger o governo e criar fatos políticos que preparem a vitória de José Serra em 2010.
Bem claro está, afinal, que a mídia não busca oferecer espaço para um debate. Ela quer ser juiz. Quer julgar e condenar Battisti e o governo. Enquanto o Estado tem o poder de encarcerar fisicamente as pessoas, a mídia tem o poder de violentá-las psicologica e moralmente.
Ia dizendo, contudo, que o grave não é criticar a decisão de Tarso. Grave é mentir. Os colunistas midiáticos que comentam o caso, sempre criticando o governo, SEMPRE citam o caso dos boxeadores cubanos. Merval Pereira, em sua coluna de hoje, não somente afronta a verdade, como vomita sobre a lógica, ao afirmar que a recente fuga de um dos pugilistas de Cuba desmente a versão do governo de que eles, após largarem a competição e fugirem com um alemão, queriam voltar. Ora, não é apenas versão do governo. Representantes do Ministério Público e da Organização dos Advogados do Brasil também entrevistaram os rapazes e afirmaram que eles queriam retornar à seu país de origem. Eles mesmos, em entrevistas concedidas em Cuba, disseram ainda mais: que agentes da Polícia Federal brasileira tentaram persuadi-los de que seria mais vantajoso, para eles, permanecer no Brasil.
Aí o Merval diz que eles foram eliminados das competições internacionais. Ora, valha-me Deus! Os caras infringiram o principal dos códigos de ética do atleta! Eles abandonaram a competição no meio! Tudo bem fugir da ilha, mas não no meio de uma competição internacional, ou então, como fizeram outros atletas cubanos, na mesma competição, no mesmo ano: que fugissem após o término da mesma. Uma das características mais importantes para um atleta é a disciplina.
Rolam boatos de que eles estariam sendo perseguidos em Cuba. É claro que esses boatos são ampliados por interesse ideológico. Mas o fato é que, a partir do momento que está provado que os cubanos voltaram por sua livre e espontânea vontade, que outros atletas cubanos que pediram para ficar no Brasil, puderam ficar, então nós não podemos culpar o governo brasileiro pelos problemas que eles possam vir a sofrer em Cuba, assim como não podemos culpar Tarso Genro pela fome no Haiti ou pela tortura na prisão de Guantánamo.
Critiquem a não-extradição de Battisti, mas deixem os atletas cubanos fora dessa história! Todas as notícias relacionadas aos mesmos deixam bem claro que eles quiseram voltar. Se, em algum momento, eles tivessem manifestado a intenção de permanecer no Brasil, o governo teria concedido asilo, como fez com outros atletas cubanos, na mesma competição e em tantas outras ocasiões.
Não acho Cuba o melhor dos mundos. Não acho Cuba maravilhosa. Tenho, contudo, uma visão com perspectiva histórica sobre Cuba, sobre a América Central, sobre a América Latina. Não foram os cubanos que transformaram a democracia e os direitos humanos numa piada de mau gosto. Quem fez isso foi a direita, foram as elites do continente, com o apoio direto dos Estados Unidos. No Chile, caças americanos bombardearam o palácio presidencial, matando Salvador Allende, um presidente eleito num sistema democrático livre e moderno. Quando mataram Allende, mataram o sonho de milhões de latino-americanos, não apenas chilenos. Quando derrubaram Jango, mataram o sonho de milhões de latino-americanos, não apenas de brasileiros. Quando Fulgêncio Batista assumiu o poder em Cuba com um golpe de estado e acabou com as instituições democráticas, ele não exterminou as esperanças apenas da juventude cubana de mudar as coisas democraticamente, mas de toda juventude ao sul do Rio Grande. Não foi por outra razão que tantos jovens pegaram em armas. Poucos anos antes, Che Guevara fizera trabalhos no México para o governo de Jacobo Arbenz Guzmán, eleito pelo voto direto - e também deposto por um golpe de estado, em 1954, articulado pelos americanos. Como, em tais circunstâncias, o jovem Chê, ou qualquer outro jovem latino-americano, se empolgaria com as vantagens de uma democracia?
E agora, cinquenta anos depois, a direita, através de seus house-organs, querem nos empurrar a tese de que a esquerda latino-americana é que é autoritária? Que aqueles jovens guerrilheiros que pegaram em armas para combater as ditaduras sangrentas de então, eles é que não acreditavam na democracia? Ora, se você defendesse democracia nos anos de chumbo, era classificado imediatamente como subversivo, preso, e lançado no oceano atlântico, do alto de um helicóptero.
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